Por William Lane Craig
A narrativa de Mateus sobre a guarda junto ao túmulo de Jesus é amplamente considerada como lenda apologética. Embora algumas das razões dadas em apoio a esse julgamento não sejam importantes, duas são mais sérias: (1) a história é encontrada somente em Mateus e (2) a história pressupõe que Jesus previu sua ressurreição e que somente os líderes judeus compreenderam aquelas predições. Mas a ausência da história nos outros Evangelhos pode ser devida à falta de interesse deles em polêmica judaico-cristã. Não há boas razões para se negar que Jesus predisse sua ressurreição e, nesse caso, a segunda objeção se torna basicamente um argumento a partir do silêncio. Do lado positivo, a historicidade da narrativa é apoiada por duas considerações: (1) como apologia, a história não é resposta infalível à acusação de rapto do corpo e (2) uma reconstrução da história de tradição que subjaz à polêmica judaico-cristã torna improvável a ficcionalidade dos guardas.
Dentre os Evangelhos canônicos, somente Mateus relata a intrigante história da colocação de guardas junto ao túmulo de Jesus (Mt. 27.62-66; 28.4, 11-15). A história serve para propósito apologético: a refutação da alegação de que os próprios discípulos tinham roubado o corpo de Jesus e, assim, forjaram sua ressurreição. Por trás da história, como Mateus a conta, parece haver uma história de tradição de polêmica judaica e cristã, um padrão de afirmação e contra-afirmação, em desenvolvimento:2
Cristão: ‘O Senhor ressuscitou!’
Judeu: ‘Não, os discípulos roubaram o corpo.’
Cristão: ‘Os guardas junto ao túmulo teriam evitado tal roubo.’
Judeu: ‘Não, os discípulos roubaram o corpo enquanto os guardas dormiam.’
Cristão: ‘Os principais sacerdotes subornaram os guardas para dizer isso.’
Embora, dentre os quatro evangelistas, somente Mateus mencione os guardas junto ao túmulo (João menciona os guardas em conexão com a prisão de Jesus; cf. Mc. 14.44), o Evangelho de Pedro também relata a história dos guardas do túmulo, e sua narrativa pode muito bem ser independente de Mateus, já que as similaridades verbais são praticamente nulas3.
Conforme a versão de Mateus, no sábado — ou seja, no Sabá —, que ele estranhamente circunavega chamando-o de o dia depois do dia da Preparação, os principais sacerdotes e fariseus pediram a Pilatos uma guarda para proteger o túmulo, a fim de impedir os discípulos de roubarem o corpo e, assim, de “cumprir-se” a predição de Jesus sobre ressuscitar ao terceiro dia. Pilatos disse-lhes: “Tendes uma guarda; ide e dai-lhe a segurança que puderdes”. Não fica claro se isso significa que Pilatos lhes deu uma guarda romana ou se lhes falou para usar sua própria guarda do templo. O Evangelho de Pedro emprega uma guarda romana, mas isso é provavelmente inserido na tradição e pode ter sido concebido para enfatizar a força da guarda. Caso se queira mencionar uma consideração psicológica, Pilatos provavelmente estaria, a essa altura, tão enojado com os judeus que pode muito bem ter-lhes repelido; mas lendas não conhecem quaisquer limites psicológicos. Se Pilatos repeliu os judeus, pode-se, então, questionar por que essa parte da história foi contada, de qualquer maneira; mas, se os judeus realmente foram até Pilatos, talvez, então, esse detalhe foi lembrado. Se Pilatos lhes deu uma guarda, é estranho que Mateus não tenha tornado isso explícito, como o fez o Evangelho de Pedro, uma vez que fortaleceria sua apologética. O fato de que os guardas retornaram aos principais sacerdotes é evidência de que se pretende uma guarda judaica; contraste com o Evangelho de Pedro, em que a guarda romana relata a Pilatos os eventos que ocorreram junto ao túmulo. A menção do governador no v. 14 pode indicar uma guarda romana; mas, no caso, não estaria claro como os judeus poderiam fazer algo para livrá-los do problema. O fato de que os guardas romanos poderiam ser executados, ao dormirem durante a vigia, e o aceitar suborno poderiam, ainda mais, apontar para uma guarda judaica. No Evangelho de Pedro, o suborno e a história do sono são eliminados; Pilatos simplesmente ordena que a guarda romana mantenha silêncio. Caso de dê à história o benefício da dúvida, pode-se supor que a guarda era judaica; mas, se alguém está convencido de que a história é lenda insignificante, nada poderia evitar que se considere a guarda como romana. Assim, a guarda é fixada e o sepulcro, selado. Diz-se que Mateus omite o tema da unção, por causa da guarda e do selamento4; porém, isso não mantém qualquer apoio, pois as mulheres eram completamente desconhecedoras de que tais ações haviam sido tomadas no Sabá. Pelo contrário, poderia ser que Mateus estivesse seguindo diferentes tradições, nesse caso, visto que o v. 15 torna evidente que há uma história de tradição por trás da narrativa de Mateus5. Antes de as mulheres chegaram, um anjo do Senhor rola de volta a pedra, e os guardas ficam paralisados com medo. Não se diz que os guardas viram a ressurreição ou mesmo que esse é o momento da ressurreição6. Depois de as mulheres partirem, alguns da guarda foram até as autoridades judaicas, que os subornaram para dizer que os discípulos roubaram o corpo. Essa história tem sido espalhada entre os judeus até este dia, acrescenta Mateus.
O relato de Mateus tem sido quase universalmente rejeitado pelos críticos como sendo uma lenda apologética. Os valores para tal julgamento, entretanto, são de peso muito desigual. Por exemplo, o fato de que a história é uma resposta apologética à alegação de que os discípulos roubaram o corpo não significa, pois, que ela seja anistórica. A melhor maneira de responder a essa acusação não seria inventando ficções, mas narrando a verdadeira história do que aconteceu. Similarmente, de nada vale insistir na objeção teológica à história, como se faz frequentemente, de que ela vai além do testemunho restante do Novo Testamento, segundo o qual Jesus apareceu somente para os seus, mas permaneceu oculto aos inimigos dele7. Alguns teólogos ficam horrorizados com o pensamento de que guardas pagãos possam ter visto o “Cristo Ressurreto”8. Mas a narrativa não fala absolutamente nada sobre qualquer aparição de Jesus aos guardas. Pelo contrário, o anjo expressamente diz: “Ele não está aqui, porque ressurgiu”; mas o túmulo é, presumivelmente, aberto para que as mulheres possam vir e ver “o lugar onde jazia” (Mt. 28.6). E, em qualquer caso, o testemunho do Novo Testamento é que Jesus realmente apareceu a céticos, a descrentes e até mesmo a inimigos (Tomé, Tiago e Paulo). A ideia de que somente o olho da fé poderia ver o Jesus ressurreto é estranha aos Evangelhos e a Paulo, pois todos eles concordam a respeito da natureza física das aparições da ressurreição9. Às vezes, insiste-se que os principais sacerdotes e fariseus não iriam até Pilatos no dia de Sabá. Mas tal inferência não é muito séria, já que não se diz que eles foram em massa, mas meramente se reuniram ali10, e não se diz que eles adentraram ao pretório (cf. Jo. 18.28). De qualquer maneira, a objeção subestima a hipocrisia de homens que, ao menos de acordo com o relato do Evangelho, poderiam atar nos outros fardos pesados, mas eles mesmos não moveriam nem um dedo para ajudar. Nem é muito persuasivo objetar à história, por ela conter absurdos inerentes — por exemplo, que os guardas não saberiam que eram os discípulos porque estavam dormindo ou que uma guarda romana nunca concordaria em espalhar história pela qual poderiam ser executados11. A primeira supõe que os judeus não poderiam ter inventado uma estúpida história para encobrir tudo; realmente, essa história era tão boa quanto qualquer outra. Pelo menos, a inferência de que foram os discípulos de Jesus não era tão forçado. Pois quem mais poderia roubar o corpo? O segundo absurdo supõe que a guarda era romana, para o que a evidência positiva é débil. E, mesmo que a guarda fosse romana, talvez a promessa dos judeus de “satisfazer ao governador” significava contar-lhe a verdade sobre o leal serviço dos guardas, caso concordassem em mentir ao povo.
Muito pelo contrário, as dificuldades mais sérias desta história são duas: (1) não é relatada na história pré-marcana da paixão, nem nos outros Evangelhos e (2) pressupõe não somente que Jesus tenha predito sua ressurreição ao terceiro dia, mas também que os judeus entenderam isso claramente, enquanto os discípulos permaneceram na ignorância. Em relação à primeira, é excessivamente estranho que os outros Evangelhos nada soubessem de tão importante evento como a colocação de uma guarda ao redor do túmulo. Isso sugere que o relato é uma lenda posterior, refletindo anos da polêmica judaico-cristã. A designação de Jesus como impostor é, de fato, marca da polêmica judaica contra o Cristianismo (Diálogo com Trifão 208, de Justino; Testamento dos Doze Patriarcas (Levi) 16.3). Mas, talvez, esse polêmico interesse fornece a própria razão de por que esse evento, mesmo se histórico, não foi incluído na história pré-marcana da paixão. Pois a história pré- marcana da paixão surgiu na vida da Urgemeinde [comunidade], antes da Auseinandersetzung [disputa] com o Judaísmo e, assim, antedata a polêmica judaico-cristã. Já que os guardas desempenharam virtualmente nenhum papel nos eventos da descoberta do túmulo vazio — na realidade, o relato mateano não exclui que a guarda já havia partido antes de as mulheres chegarem — a história pré-marcana da paixão pode simplesmente omiti-los. Se a calúnia segundo a qual os discípulos roubaram o corpo estava restrita a certos grupos (”essa história tem-se divulgado entre os judeus [para Ioudaiois] até os dias de hoje”), não se pode, então, excluir que Lucas ou João poderiam não ter essas tradições. E os evangelistas, com frequência, inexplicavelmente omitem o que parecem ser incidentes importantes que podem lhes ter sido conhecidos (por exemplo, a grande omissão de Lucas, de Mc. 6.45 — 8.26), de modo que é perigoso usar uma omissão como teste para historicidade.
Quanto à segunda objeção, devemos ser cuidadosos para não excluir, a priori, a possibilidade de que Jesus realmente predisse sua ressurreição, já que de antemão eliminá- la seria retornar ao racionalismo teológico do século XVIII em sua pressuposição contra o sobrenatural. E, se pressuposições filosóficas não podem excluir a predição de Jesus, tampouco o podem as teológicas — por exemplo, de que isso representa uma espécie de “triunfalismo” que minimiza a extensão do sacrifício de Jesus, uma vez que ele sabia que ressuscitaria. Concepções teológicas sobre o que é “apropriado” para a pessoa e obra de Jesus não podem ditar à história o que deve ter acontecido; antes, concepções teológicas podem simplesmente ter de mudar à luz da história, isso sendo atraente ou não às nossas sensibilidades religiosas. A única base para aceitar ou rejeitar as predições de Jesus como históricas deve ser empírica.
Quais, então, são as bases empíricas para se pensar que Jesus não predisse sua ressurreição? Às vezes, assevera-se que a predição de Jesus sobre sua ressurreição é incompatível com o desespero e desesperança dos discípulos. Mas isso falha em contar com as declarações de que os discípulos não podiam entender como um Messias prestes a morrer e ressuscitar seria possível (Mc. 8.32, 9.10). O conceito lhes era totalmente estranho e não fazia sentido de acordo com as concepções do triunfante Rei de Israel, ainda que — Marcos enfatiza — Jesus lhes tenha dito abertamente que sofreria, seria morto e ressuscitaria (Mc. 8.32). É interessante que, quando Jesus diz a Marta que Lázaro ressuscitará, sua reação é: “Sei que ele ressuscitará na ressurreição, no último dia” (Jo. 11.24). Os discípulos podem não ter tido qualquer expectativa de que a profetizada ressurreição de Jesus seria diferente; na realidade, isso fica implícito na questão deles concernente à vinda escatológica de Elias, anterior à ressurreição (Mc. 9.10,11)12. Assim, o fato de que os discípulos falharam em compreender o significado das predições é, realmente, muito plausível e nisso não se pode insistir contra a historicidade delas. Talvez, possa afirmar-se que a linguagem das predições é ex ecclesia e que, portanto, são escritas remontando à vida de Jesus. Mas, de fato, não há palavras nessas predições que o próprio Jesus poderia não ter usado. O uso de “terceiro dia” poderia ter significado somente um curto período13. Mas mesmo se esse detalhe foi acrescentado a partir do querigma, não se acarreta que Jesus poderia não ter predito sua ressurreição. Da mesma maneira, o discurso dos judeus a Pilatos na construção de Mateus, e o tema do terceiro dia refletem a formulação querigmática de I Coríntios 15.4. Na verdade, os judeus podem ter pedido uma guarda para ali ser posicionada durante período indeterminado de tempo, ou durante a festa. As predições da ressurreição terem tomado coloração querigmática não prova que elas não foram proferidas.
Talvez, a mais séria dificuldade com a história da guarda, contudo, é que, se os discípulos não compreenderam o sentido das predições da ressurreição, tampouco os judeus, que tinha muito menos contato com Jesus, entenderiam. Esse é, entretanto, essencialmente um argumento do silêncio, uma vez que Mateus não conta como os judeus souberam da predição de Jesus. Supõe que se têm registrado nos Evangelhos todos os casos em que Jesus falou de sua ressurreição ou que, se essa predição foi levada sub- repticiamente aos judeus, devemos saber sobre isso. É possível que as ações dos judeus não foram motivadas, de modo algum, por qualquer conhecimento das profecias da ressurreição, mas foram simplesmente pensamento posterior para prevenir qualquer problema que pudesse ser causado pelos discípulos, junto ao túmulo, durante a festa. Tomada em conjunto, essas considerações têm peso cumulativo, entretanto, e por si mesmas provavelmente levariam alguém ao ceticismo quanto à historicidade da narrativa da guarda.
Porém, há outras considerações que ficam positivamente a favor dela. Por exemplo, se a história é uma ficção apologética concebida para excluir o roubo do corpo pelos discípulos, a história não é inteiramente bem-sucedida, pois existe óbvio período de tempo durante o qual os discípulos poderiam ter roubado o corpo sem ser detectado — a saber, entre seis horas de sexta-feira à noite e algum momento de sábado de manhã. Por o túmulo já estar vazio quando os guardas o abriram, é possível que já estivesse vazio quando os guardas selaram a pedra. Mateus se esquece de dizer que o sepulcro foi aberto e checado antes de ser selado, de modo que é possível que os discípulos tenham removido o corpo e recolocado a pedra na sexta-feira à noite, após a partida de José. É claro que consideraríamos tal artifício como historicamente absurdo, mas a questão é que, se a guarda é uma invenção cristã visando a refutar a alegação judaica de que os conspiradores discípulos tinham roubado o corpo, o escrito não fez um trabalho muito bom. Para a maneira como uma lenda apologética lida com essa história, veja o Evangelho de Pedro: os escribas, fariseus e anciãos dirigiram-se ao sepulcro, e todos eles rolaram a grande pedra pela entrada do túmulo (sem menção de José de Arimateia, apesar de tudo!), selaram-no sete vezes e mantiveram vigilância. No domingo de manhã, o próprio Jesus é visto saindo do túmulo com dois anjos, e as testemunhas incluíram não somente os soldados e os anciãos, mas também multidão de Jerusalém e do interior que viera para ver o sepulcro! Essa é apologética infalível: os romanos e os judeus são os responsáveis pelo sepultamento de Jesus no mesmo dia da morte dele, permanecem ali sem interrupção e, quando o túmulo se abre, não está vazio, mas Jesus sai de lá diante dos olhos de multidão de testemunhas. Em contraste, no relato de Mateus, a guarda é consideração posterior; o fato de que não foram considerados e colocados ali até o próximo dia poderia refletir o fato de que somente na sexta-feira à noite os judeus souberam que José tinha, contrariamente às expectativas, colocado o corpo em um túmulo, em vez de permitir que fosse descartado em vala comum. Isso poderia ter motivado a incomum visita deles a Pilatos, no dia seguinte.
Mas, talvez, a mais forte consideração a favor da historicidade da guarda é a história da polêmica pressuposta nesse relato. A calúnia judaica de que os discípulos haviam roubado o corpo era, provavelmente, a reação à proclamação cristã de que Jesus ressuscitara14. Essa alegação judaica também é mencionada no Diálogo com Trifão 108, de Justino. Para desmentir tal acusação, os cristãos precisariam apenas de indicar que a guarda junto ao túmulo teria evitado o roubo e que ficaram imobilizados com medo, quando o anjo apareceu. Nesse estágio da controvérsia, não há necessidade de se mencionar o suborno à guarda. Isso surge apenas quando a polêmica judaica responde que os guardas tinham caído no sono, permitindo, assim, que os discípulos roubassem o corpo. O sono dos guardas poderia simplesmente ter sido desenvolvimento judaico, uma vez que não serviria a qualquer propósito para a polêmica cristã. A resposta cristã foi que os judeus subornaram a guarda para dizer isso, e é nesse ponto que a controvérsia permaneceu no tempo da escrita de Mateus. Porém, se essa é provável reconstrução da história da polêmica, fica difícil acreditar que a guarda é anistórica15. Em primeiro lugar, é improvável que os cristãos inventariam uma ficção como a guarda, que todos, especialmente os oponentes judeus, perceberiam nunca ter existido. Mentiras são a mais frágil espécie de apologética que pode haver. Uma vez que a controvérsia judaico-cristã sem dúvida se originou em Jerusalém, é difícil entender como os cristãos poderiam ter tentado refutar a acusação dos oponentes deles, com uma falsificação que teria sido evidentemente irreal, já que nas redondezas não havia guardas que afirmaram ter se postado junto ao túmulo. Mas, em segundo lugar, é ainda mais improvável que, confrontados com mentira tão palpável, os judeus teriam, em vez de expô-la e denunciá-la como tal, começado a criar outra mentira, mais estúpida, de que os guardas caíram no sono enquanto os discípulos violaram o túmulo e foram embora com o corpo. Se a existência da guarda fosse falsa, a polêmica judaica nunca teria tomado o rumo que tomou. Antes, a controvérsia teria parado ali mesmo, com a renúncia de que a guarda havia sido fixada pelos judeus. Nunca chegaria ao ponto em que os cristãos teriam de inventar uma terceira mentira, a de que os judeus subornaram a fictícia guarda. Então, enquanto há razões para se duvidar da existência da guarda junto ao túmulo, há igualmente sérias considerações a seu favor. Parece melhor deixar a questão em aberto. Ironicamente, o valor do relato de Mateus para as evidências a favor da ressurreição nada tem a ver com a guarda, de maneira alguma, ou com a intenção dele de refutar a alegação de que os discípulos roubaram o corpo. A teoria da conspiração tem sido universalmente rejeitada com bases morais e psicológicas, de modo que a narrativa da guarda, como tal, é de fato muito supérflua. Com guarda ou sem guarda, nenhum crítico atual acredita que os discípulos poderiam ter roubado o túmulo e falseado a ressurreição. Antes, o verdadeiro valor do relato de Mateus é informação incidental — e por essa razão muito mais confiável — de que a polêmica judaica nunca negou que o túmulo estivesse vazio, mas em vez disso tentou explicar a situação. Portanto, os próprios antigos oponentes dos cristãos dão testemunho ao fato do túmulo vazio16.
Bibliografia
1 Esta discussão provém de pesquisa conduzida na Universidade de Munique, com apoio da Fundação Alexander von Humboldt.
2 Cf. Paul Rohrbach, Die Berichte über die Auferstehung Jesu Christi (Berlim: Georg Reimer, 1898), p. 79.
3 Conforme B. A. Johnson, “The Empty Tomb in the Gospel of Peter Related to Mt. 28.1-7″ (dissertação de doutorado, Universidade Harvard, 1966), p. 17. Isso não compromete alguém com a visão de Johnson de que essa era uma tradição de aparição.
4 Kirsopp Lake, The Historical Evidence for the Resurrection of Jesus Christ (Londres: Williams & Norgate, 1907; Nova Iorque: G. P. Putnam’s Sons, 1907), p. 61; Walter Grundmann, Das Evangelium nach Mathäus, 3rd ed., THKNT I (Berlim: Evangelische Verlagsanstalt, 1972), p. 568; Josef Blinzter, ‘Die Grablegung Jesu in historischer Sicht’, in Resurrexit, ed. Edouard Dhanis (Roma: Libreria Editrice Vaticana, 1974), p. 82.
5 Evidências de tradição pré-mateana também são encontradas em várias palavras que são hapax legomena para o Novo Testamento: epaurion, paraskeue, planos/plane, kaustodia, asphalizo; igualmente, a expressão “os principais sacerdotes e fariseus” (cf. 21.45) é incomum em Mateus e nunca aparece em Marcos ou Lucas, mas é comum em João (7.32, 45; 9.47,57; 18.3). Para discussão, veja I. Broer, Die Urgemeinde und das Grab Jesu, SANT 31 (Munique: Kösel Verlag, 1972), pp., 69-78; F. Neirynck, ‘Les femmes au tombeau: Étude de la rédaction mathéenne’, NTS 15 (1968-9): pp. 168-90. Sobre a independência de Mateus e Marcos, veja E. Ruckstuhl and J. Pfammatter, Die Auferstehung Jesu Christi (Lucerna e Munique: Rex, 1968).
6 Contraste o Evangelho de Pedro 8.35-42:
Ora, na noite em que o dia do Senhor alvoreceu, quando os soldados, dois a dois em cada turno, mantinham a guarda, ressoou alta voz no céu, e viram os céus abertos e dois homens de lá desceram em grande brilho e se aproximaram ao sepulcro. A pedra que havia sido colocada junto à entrada do sepulcro começou, por si mesma, a rolar, e moveu-se para o lado; e o sepulcro foi aberto, e ambos os jovens entraram nele. Quando, então, os soldados viram isso, despertaram o centurião e os anciãos — pois eles também estavam lá para ajudar na vigilância. E, enquanto relatavam o que tinham visto, viram novamente três homens saindo do sepulcro, e dois deles sustentando o outro, e uma cruz os seguindo, e as cabeças dos dois chegando até o céu; mas aquele que, pelas mãos, era levado por eles ultrapassava os céus. E ouviram uma voz dos céus, gritando: ‘Pregaste aos que dormem?’, e da cruz ouviu-se a resposta ‘Sim’.”
e a Ascensão de Isaías 3.16:
“Gabriel, o Anjo do Espírito Santo, e Miguel, o chefe dos santos anjos, ao terceiro dia abrirão o sepulcro: e o Amado sentado sobre seus ombros se revelará”.
7 Grundmann, Matthäus, p. 565; John E. Alsup, The Post-Resurrection Appearance Stories of the Gospel- Tradition, CTM A5 (Stuttgart: Calwer Verlag. 1975), p. 117.
8 Assim, Grass diz que, além das particularidades, a história da guarda é inacreditável, porque guardas pagãos teriam visto a ressurreição (Hans Grass, Ostergeschehen und Osterberichte, 4. ed. [Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1970], p. 25.). Von Campenhausen também declara que a história implica que guardas pagãos seriam testemunhas da ressurreição, e não podemos concordar que isso deveria acontecer (Hans Freiheirr von Campenhausen, Der Ablauf der Osterereignisse und das leere Grab, 3. ed. rev., SHAW [Heidelberg: Carl Winter, 1966], p. 29). Similarmente, O’Collins faz a estarrecedora asserção de que, se Anás e Caifás estivessem com os discípulos quando Jesus apareceu, eles não teriam visto nada (Gerald O’Collins, The Easter Jesus [Londres: Carton, Longman & Todd, 1973], p. 59). E isso apesar do que Grass repetidamente descreve como o “realismo massivo” dos Evangelhos! Cf. Koch, Auferstehung, pp. 59-60, 204, que se escandaliza com a objetividade das aparições do evangelho, as quais ele em vão tenta construir em categorias completamente subjetivas.
9 Sobre a concordância entre Paulo e os Evangelhos acerca da natureza do corpo da ressurreição, veja Robert H. Gundry, Soma in Biblical Theology (Cambridge: Cambridge University Press, 1976), pp. 159-83; Ronald J. Sider, ‘The Pauline Conception of the Resurrection Body in I Corinthians XV.35-54′, NTS 21 (1975): pp. 428-39; Alexander Sand, Der Begriff ‘Fleisch’ in den paulinischen Hauptbriefen, BU 2 (Regensburg: Friedrich Pustet, 1967), pp. 152-3; Jean Héring, La première épitre de saint Paul aux Corinthiens, 2. ed., CNT 7 (Neuchatel, Suíça: Delachaux et Niestlé, 1959), pp. 146-8; H. Clavier, ‘Brèves remarques sur la notion de soma pneumatikon‘, in The Background of the New Testament and Its Eschatology, ed. W. D. Davies e W. Daube (Cambridge University Press, 1956), pp. 342-62; Wilhelm Michaelis, Die Erscheinungen der Auferstandenen (Basileia: Heinrich Majer, 1944), p. 96.
10 Veja Ernst Lohmeyer, Das Evangelium des Matthäus, 4. ed., ed. W. Schmauch, KEKNT (Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1967), p. 400.
11 Lake, Evidence, p. 178; Willi Marxsen, The Resurrection of Jesus of Nazareth, trad. Margaret Kohl (Londres: SCM, 1970), p. 46; Grundmann, Mätthaus, p. 571. Orr pensa que os guardas aceitando suborno não é algo tão forçado, uma vez que a fuga deles já era violação de dever (James Orr, The Resurrection of Jesus (Londres: Hodder & Stoughton, 1909], p. 160). Von Campenhausen levanta outros absurdos, tal como o fato de que a guarda se reportou aos judeus e que os cristãos, apesar da mentira dos guardas, sabiam de tudo (Von Campenhausen, ‘Ablauf’, p. 29). Mas o primeiro ponto é evidência de que a guarda era judaica; o segundo não nos deve surpreender, já que conspirações secretas quase sempre vêm à luz. De qualquer maneira, a conversa dos judeus com Pilatos é provavelmente uma imaginativa reconstrução cristã do que eles inferiram ter acontecido, o que explicaria o tema do terceiro dia e a linguagem querigmática empregada.Perry considera a colocação de uma guarda judaica junto ao túmulo, pelos judeus, sem conhecimento da predição de Jesus, como historicamente defensável (Michael Perry, The Easter Enigma, com Introdução de Austin Farrer [Londres: Faber & Faber, 1959], pp. 98-9).
12 Embora a doutrina da ressurreição seja atestada no Antigo Testamento e tenha florescido no período intertestamentário, a concepção judaica sempre era de uma ressurreição geral e escatológica. Em lugar algum, encontra-se qualquer noção da ressurreição de um indivíduo isolado ou de uma ressurreição antes do fim do mundo (Veja as observações de Ulrich Wilckens, Auferstehung, TT 4 [Stuttgart e Berlim: Kreuz Verlag, 1970], p. 31; Joachim Jeremias, ‘Die älteste Schicht der Osterüberlieferung’, in Resurrexit, p. 194). Portanto, o equívoco dos discípulos tem conotação histórica.
13 Barnabas Lindars, New Testament Apologetic: The Doctrinal Significance of Old Testament Quotations (Filadélfia: Westminster Press, 1961; Londres: SCM Press, 1961), pp. 59- 72; O’Collins, Easter, p. 12. Ainda que se concorde com Lehmann que o tema do terceiro dia é expressão teológica, retirada da LXX e posteriormente elaborada na exegese rabínica, significando o dia da libertação, vitória e tomada de controle da parte de Deus (Karl Lehmann, Auferweckt am dritten Tag nach der Schrift, QD 38 [Friburgo: Herder, 1968], pp. 262-90), não há motivo, se a igreja primitiva poderia ter usado essa expressão, para que Jesus não a pudesse ter usado com o mesmo sentido, ao predizer sua ressurreição. Hooke também nos lembra que todos os ditos escatológicos de Jesus pressupõem sua ressurreição, como o fazem suas declarações durante a Última Ceia (S. H. Hooke, The Resurrection of Christ as History and Experience [Londres: Darton, Longman & Todd, 1967], p. 30; cf. Michael Ramsey, The Resurrection of Christ [Londres: Centenary Press, 1945], pp. 38-9).
14 A proclamação pode ter sido nas palavras duas vezes repetidas em Mt. 27.64; 28.7: “Ele ressuscitou dos mortos”. Contrariamente a Grass, Ostergeschehen, p. 23, isso poderia evocar a reação de que os discípulos roubaram o corpo, se o próprio túmulo vazio era argumento apologético.
15 O argumento pressupõe que ou que a tradição subjacente é pré-mateana ou que o próprio evangelho foi escrito antes de 70 AD, pois depois desse tempo as pessoas em posição de saber a verdade teriam sido mortas ou dispersadas. Que a tradição seja pré-mateana fica claro: (1) a polêmica judaica por trás da história muito provavelmente surgiu da própria Jerusalém, em reação à proclamação apostólica da ressurreição. (2) Uma reconstrução da história da polêmica mostra que Mateus herdou a controvérsia sobre a guarda. Que ele não tenha inventado a guarda desde o princípio para contra-atuar diante da simples acusação judaica de roubo fica evidente a partir dos elementos do sono e do suborno dos guardas. (3) A própria narrativa contém características não-mateanas, como indicado na nota 5. Que o Evangelho de Pedro conheça tradição não- mateana da história da guarda também indica que a história não se originou com Mateus. Uma vez que a controvérsia, dessa maneira, antedata a destruição de Jerusalém, é muito difícil construí-la como calorosa discussão sobre uma entidade imaginária. Essa conclusão só é reforçada se o próprio Mateus foi escrito antes de 70 AD, como sustentado, por exemplo, por Bo Reicke, ‘Synoptic Prophecies on the Destruction of Jerusalem’, in Studies in New Testament and Early Christian Literature, ed. D. E. Aune (Leiden: E. J. Brill, 1972), pp. 121-34; J. A. T. Robinson, Redating the New Testament (Londres: SCM Press, 1976), pp. 19-26, 86-117.
16 Mahoney objeta que os judeus argumentaram como fizeram somente porque teria sido “sem graça” dizer que o túmulo era desconhecido ou estava perdido (Robert Mahoney, Two Disciples at the Tomb, TW 6 [Berna: Herbert Lang, 1974], p. 100). Mas nisso Grass está correto: se o sepulcro fosse desconhecido ou estivesse perdido, os pregadores da ressurreição teriam se deparado com a reação de Atos 2.13: “Eles estão embriagados com vinho”. Seriamente duvido se o ser “sem graça”, incolor, seria considerado pela hierarquia judaica como algo tão grosseiro que eles preferiram inventar o túmulo vazio para os cristãos. E, se o local do sepultamento de Jesus era conhecido, como é provável (Blinzler, ‘Grablegung’, pp. 94-6, 101-2), a reação dos judeus se torna ainda mais problemática: pois, em vez de apontarem para o túmulo de Jesus ou exporem o cadáver, eles se emaranharam em desesperada série de absurdos, tentando explicar a ausência do corpo dele. O fato de os inimigos do Cristianismo terem se sentido obrigados a explicar o túmulo vazio mostra não somente que o túmulo era conhecido (confirmação da história do sepultamento), mas também que estava vazio.
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