domingo, 9 de agosto de 2009

Culto das Serpentes


Autor : Alexandre Farias

“Não tentarás o Senhor teu Deus” - (Dt 6.16)

A busca de relacionamento com o sagrado sempre foi uma necessidade do ser humano. A história e a ciência da religião nos mostram que opções nunca faltaram e, em alguns casos, foram registrados invenções e inovações de cultos bastante estranhos.

Desde a antiguidade, algumas comunidades místicas vêm promovendo rituais sobremaneira exóticos (do nosso ponto de vista). As divindades egípcias, os deuses africanos e as práticas religiosas indígenas sempre associaram os animais aos seus deuses e rituais, cultuando um verdadeiro “zoológico sagrado”. E é justamente esse o enfoque deste artigo: chamar a atenção para o culto a um animal, mais especificamente um réptil, a serpente.

Sem dúvida, a serpente sempre foi um dos animais mais temidos pelo homem, mas isso não a impede de compor, de maneira emblemática, alguns cerimoniais religiosos. É detentora de importância e significados (pejorativos ou não) em diversas religiões, por isso convidamos o leitor a descobrir um pouco mais sobre esse fenômeno.


George Hensley e o culto da serpente

Extrair um versículo de seu contexto pode ser um pretexto para se criar uma heresia. O estudo das Escrituras Sagradas sem uma hermenêutica correta gerou diversos absurdos, e um deles é o culto à serpente, que teve início com George Hensley, no Estado do Tennessee (EUA), em 1908, ano estimado.

Segundo consta, Hensley se sentiu chamado por Deus depois de ler Marcos 16.18, que diz: “Pegarão nas serpentes; e, se beberem alguma coisa mortífera, não lhes fará dano algum; e porão as mãos sobre os enfermos, e os curarão” (V. tb. Lc 10.19).

Após a leitura, Hensley entendeu que não deveria temer as serpentes, pois a Bíblia lhe garantia o seguinte: se ele tivesse fé, poderia segurá-las que elas não lhe fariam dano algum, ainda que fosse picado.

Então, para dar início à seita, foi até as montanhas de White Oak e capturou uma cascavel, a fim de apresentá-la em seu primeiro culto, do qual participaram alguns conhecidos seus. Na ocasião, leu a passagem de Marcos para seus amigos e segurou a serpente, para exibir sua fé.

Como aquele gesto parecia um ato de coragem e confiança em Deus, a iniciativa de Hensley incitou os participantes a fazerem o mesmo. Assim teve início o culto às serpentes.

As reuniões eram realizadas nas casas dos seguidores do grupo, quando não, no meio das florestas ou em lugares desertos, previamente combinados. Os participantes freqüentavam os rituais com suas Bíblias e os mais corajosos já se antecipavam levando uma cobra em uma das mãos. As orações tinham de ser acompanhadas pelo suposto dom de línguas que os adeptos diziam possuir.

Durante dez anos, não houve nenhuma ocorrência de mordida nas reuniões. Certo dia, porém, Garland Defriese, um dos adeptos, foi picado por uma cascavel durante um ritual e caiu com as presas do réptil cravadas no corpo. O homem não morreu, mas esse fato assustou os fiéis e, por conta disso, houve um pequeno êxodo dos “fiéis”.

Como já era de se esperar, Defriese foi acusado, pelos adeptos de Hensley, de ter pouca fé.

Após esse episódio, o fundador do grupo decidiu mudar de região, iniciando o culto às serpentes na montanha de Pine, no Kentucky. Ali, o templo tinha uma construção rústica e o grupo recebia, no máximo, cinqüenta pessoas em cada reunião.

Na década de 40, do século passado, a liderança do grupo ficou a cargo de Tom Harden, filho de um dos primeiros seguidores de Hensley. Como líder, Harden foi picado quatro vezes, mas se recuperou de todos os “acidentes”.


O beijo da serpente

Em um dos rituais do culto à serpente, os adeptos, em transe, são separados por uma corda. Aqueles que têm fé para segurar as serpentes ficam de um lado e os que não têm, do outro. Como se pode perceber, trata-se de um critério sem nenhuma lógica.

Em dado momento, as serpentes são apresentadas, reunidas em uma única caixa. Então, cada adepto é desafiado a colocar a mão dentro da caixa e retirar a “sua” serpente. O risco de ser picado é muito grande, pois, geralmente, as cobras são manipuladas sem nenhum cuidado e, por conta disso, ficam extremamente irritadas.

Conta-se que uma fiel, conhecida como “irmã Minnie Parker”, costumama enrolar uma enorme cascavel no pescoço e dançar com o animal durante o culto. Quando não, andava, descalça, por entre dezessete cascavéis sem ser picada por nenhuma delas.

A explicação do líder é que esse ato nada mais é do que uma forma de dominar o mal. Todavia, esse procedimento não é, segundo a seita, a única maneira de demonstrar fé em Deus. Uma demonstração mais contundente é levantar a serpente até a altura da cabeça e deixar o réptil passar a língua no rosto. É o beijo da serpente.

Os relatos mais absurdos também encerram testemunhos de adeptos que tomavam venenos das próprias víboras sem quaisquer conseqüências malévolas.

Essa comunidade permaneceu desconhecida pelo povo americano até 1945, quando Lewis Ford morreu depois de ter sido picado. O caso foi divulgado por alguns jornais da região e a notícia causou a prisão dos líderes e de alguns adeptos. Mas, ao contrário do que se poderia pensar, as prisões renderam mais adeptos ao grupo.


As serpentes no mundo

No Egito

No Egito antigo, a religião essencialmente politeísta deu abertura para que várias espécies de animais fossem consideradas sagradas. Comumente, estavam associadas à principal divindade da região em que eram cultuadas, mumificadas e enterradas. Estudiosos assinalam, curiosamente, que o patrocínio do funeral do animal era reconhecido como uma boa ação. Crocodilos, peixes e serpentes participavam da diversificada lista dos deuses egípcios que mais recebiam honras funerárias.

Nesse país, em tempos remotíssimos, a sabedoria das cobras era conhecida pelos médicos. O mesmo acontecia na Grécia.


Na África

Na África, a prática de adorar esse réptil é, ainda hoje, comum entre muitas tribos. Na Nigéria, por exemplo, existe um provérbio que diz que “quem maltrata uma cobra, ofende um antepassado”. Uma das lendas africanas conta que, certo dia, o deus Leza veio à terra e perguntou a todas as criaturas vivas quem desejaria viver para sempre. Como todas dormiam, somente a cobra respondeu: “eu”. Essa lenda deu origem ao mito africano animista de que as serpentes nunca morrem e se rejuvenescem todas as vezes que trocam de pele.


Nos Estados Unidos

Os índios cherokes, que habitavam o Leste dos EUA, acreditavam que todo aquele que matava uma serpente terminava com problemas mentais, pois estaria ofendendo os deuses, por isso precisaria sofrer castigo. Esses índios associavam os raios das tempestades às cobras. Acreditavam que os raios eram formados por sete cascavéis voadoras que gritavam umas as outras e sacudiam seus chocalhos enquanto apareciam nos céus.


No Brasil

As associações divinas entre o ser humano e os animais estão presentes também no xamanismo. No Brasil, o índio guarani compara a serpente com a regente da vida, a coluna vertebral humana, que sustenta o corpo material e espiritual.


Na Índia

É na Índia que a serpente é mais reverenciada. No hinduísmo, existe um grande respeito pelos animais, sobretudo a vaca, o macaco e a serpente. São considerados sagrados porque, preferencialmente, é neles que a divindade costuma se manifestar.

Vishnu, a segunda deidade da trindade hindu, é o responsável pela proteção, manutenção e preservação da criação, além disso, possui relação intrínseca com a serpente. É apresentado deitado em uma serpente de mil cabeças, flutuando num oceano de leite. Neste caso, é chamado de Narayana, “aquele que mora nas águas cósmicas”. De seu umbigo sai um lótus onde está Brahma, o criador. A seus pés, está sua consorte Lakshmi, representando a beleza e a riqueza que devem se curvar diante do Absoluto. Envolvendo o lótus está uma serpente, Shesha, ou Ananta, que simboliza a eternidade. Essa serpente possui mil cabeças voltadas para o Senhor Vishnu, que representa o ego com seus mil desejos e pensamentos que reconhecem o Absoluto.

A serpente também está presente na ioga, por meio da meditação kundalini.

Os hindus crêem que a serpente e o homem se distinguem de todas as outras espécies animais. Para eles, se o homem se encontra no final de uma escala genética evolutiva, a serpente deve ser colocada no início dessa escala.

Kundalini Sakti, a energia dormente e enroscada, é o potencial vasto da energia psíquica contida em todos nós, segundo os princípios hindus. Normalmente, o símbolo dessa energia é uma serpente enroscada em três voltas e meia, com a calda na boca e espiralando em torno de um eixo central (“sacrum” ou “osso sagrado/’) na base de nossa coluna. O despertar dessa serpente e a manifestação de seus poderes são o objetivo primário da prática kundalini yoga, cujo objetivo é despertar a serpente Sakti que, quando está pronta para se desdobrar, ascende pelos chakras espinhais para se unir com Shiva, a “consciência pura que permeia todo o Universo”.


No Haiti

Os adeptos do vodu acreditam que “o beijo da serpente”, como ocorre no culto promovido por Hensley, concede ao praticante uma visão especial e poderes mágicos. Deriva-se disso a crença vodu de que os primeiros homens eram cegos e que coube à serpente dar visão à espécie humana.

O vodu também é praticado nos EUA, onde as serpentes faziam parte dos rituais, mas foram abolidas devido às picadas fatais que nas cerimônias. Hoje, os únicos a manipularem as víboras são os sacerdotes e as sacerdotisas, que as seguram firme nas mãos.

Quanto à crença vodu, vale mencionar que, segundo a Bíblia, a serpente não trouxe a visão ao homem. Pelo contrário, tomada pelo diabo, a serpente instou o homem à morte espiritual. A visão que Deus gostaria que o homem tivesse foi tirada pela serpente que, possuída por Satanás, fez que Eva, longe de Adão, seu marido, comesse o fruto que Deus ordenou que não fosse comido (Gn 2.17).


Serpentes na Bíblia

Logo no primeiro livro das Escrituras Sagradas, a serpente aparece sendo caracterizada como um dos animais mais sagazes entre todos os animais (Gn 3.1).

Por ter sido usada por Satanás na queda do homem, a serpente foi amaldiçoada por Deus e sentenciada a rastejar pelo resto de sua existência, comendo poeira (Gn 3.14).

Quanto a essa questão, é interessante a descoberta no campo arqueológico que trouxe uma nova perspectiva sobre essas criaturas. Um fóssil recém-descoberto na Patagônia revelou que a mais antiga serpente conhecida no meio científico tinha “pernas”.

Jack Conrad, pesquisador do Museu Americano de História Natural, em Nova York, dá o seu depoimento sobre a najash rionegrina, nome dado ao fóssil: “Vai mesmo ajudar a pôr um fim em parte da controvérsia sobre a evolução e a origem das serpentes”. Contudo, não vamos nos aprofundar neste assunto, porque a ciência não é a base final da nossa crença, e também porque, muitas vezes, tais descobertas foram manipuladas para que pudessem “provar” o evolucionismo darwiniano e, depois, revelaram-se conclusões fraudulentas.

O fato é que as víboras foram usadas por Deus para que o Senhor pudesse demonstrar sua ira contra a rebelião (ou apostasia) do homem em determinadas ocasiões (Nm 21.5,6; Jr 8.17).

João Batista qualificou os fariseus e os saduceus de “raça de víboras” (Mt 3.7). Jesus fez o mesmo: “Serpentes, raça de víboras! como escapareis da condenação do inferno?” (Mt 23.33).

Satanás é comparado a uma serpente. No livro de Apocalipse é chamado de “antiga serpente” (12.9). O apóstolo Paulo se refere a Satanás como a “serpente do Jardim do Éden”. E faz isso quando fala da ocasião em que ela enganou o primeiro casal terreno (1Co 11.3).

Em Lucas 10.19, quando Jesus disse: “Eu vos dei autoridade para pisar serpentes e escorpiões, e toda a força do inimigo...”, estava relacionando as ações de Satanás com a serpente.

Falando ainda de Jesus, temos que um dos profetas do Antigo Testamento registrou uma profecia sobre a paz do reino messiânico. Em Isaías 11.8,9, a Bíblia diz o seguinte: “Brincará a criança de peito sobre a toca da áspide [espécie de cobra] e o já desmamado meterá a mão na cova do basilisco [serpente]. Não se fará mal nem dano algum em todo o monte da minha santidade, pois a terra se encherá do conhecimento do Senhor, como as águas cobrem o mar”. Ainda no livro de Isaías, o profeta relata: “O lobo e o cordeiro se apascentarão juntos, e o leão comerá palha como o boi, mas o pó será a comida da serpente. Não farão mal nem dano algum em todo o meu santo monte, diz o Senhor” (65.25).

Como podemos ver, as serpentes são extremamente representadas na Bíblia, mas gostaríamos de ressaltar um relato de suma importância a respeito desse animal. Estamos nos referindo à passagem que fala da “serpente de metal”, com a qual pretendemos encerrar este artigo.


A serpente de metal

Talvez, o leitor esteja se perguntando sobre a serpente de metal que curou todos aqueles que foram picados pelas víboras venenosas durante a peregrinação dos hebreus à terra de Canaã. Deus mandou Moisés fundir uma serpente de metal e colocá-la em um poste para que todas as vítimas mordidas fossem curadas (Nm 21.9).

A serpente de metal tipificava o poder do Salvador que está acima do poder da “antiga serpente”. O apóstolo Paulo declarou o seguinte aos gálatas: “Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se maldição por nós, porque está escrito: Maldito todo aquele que for pendurado no madeiro (Gl 3.13).

O próprio Jesus comparou sua morte com aquela serpente levantada no deserto. E, para tanto, usou as seguintes palavras: “E como Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do homem seja levantado; para que todo aquele que nele crê tenha a vida eterna” (Jo 3.14,15).

Da mesma forma que os israelitas eram curados das picadas das víboras ao fitarem a serpente de metal no deserto, todos que “olham” para o madeiro, onde Jesus foi levantado, e se fez maldito por nós, é curado da picada da “antiga serpente”, pela fé. A morte e a ressurreição de Jesus nos trouxeram a paz que excede todo o entendimento. Ou seja, a morte e a ressurreição de Jesus nos trouxeram a promessa de um reino de paz, sem o perigo das picadas venenosas de Satanás.

O poder de Deus também foi superior ao dos magos do Egito. Da mesma forma que as varas dos magos egípcios se transformaram em serpentes, assim ocorreu com a vara de Moisés. Mas com uma diferença: a serpente de Moisés engoliu as serpentes dos magos. Deus sempre usou o seu poder para retirar o efeito das picadas de Satanás. A passagem mais contundente quanto a esse assunto é também a primeira profecia messiânica registrada nas Escrituras. Vejamos: “E porei inimizade entre ti e a mulher, e entre a tua semente e a sua semente; esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar” (Gn 3.15).

É somente por meio dessa chave interpretativa que a serpente tem lugar no culto cristão. Pegar uma serpente e deixá-la lamber o rosto para fazer valer a promessa de proteção pregada pelos evangelhos nada mais é do que tentar Deus, o que nem Jesus ousou fazer (Mt 4.7).

Infelizmente, a sagacidade de Satanás e a ignorância bíblica de alguns homens deram origem a estranhos cultos chamados de “cristãos”, nos quais, na verdade, o objeto de adoração é a serpente. Não nos causaria nenhuma admiração se essas pessoas, de repente, convidassem também os “escorpiões” para esse ritual peçonhento. Afinal, os escorpiões também são mencionados por Jesus (Lc 10.19).


Referências:

Revista A magia do Egito, deuses e mitos. Edição Especial. São Paulo: Escala, s/ano.

Sociedades secretas. Série “Culturas, história e mitos”, nº 12. Edição Especial. São Paulo: Escala, s/ano.

Jornal O Estado de São Paulo. Caderno “Ciência e meio ambiente”, 19 de abril de 2006.

Dicionário Ilustrado da Bíblia. São Paulo: Vida Nova, 2004.

MATHER, George A; NICHOLS, Larry A. Dicionário de religiões, crenças e ocultismo. São Paulo: Vida, 2000.

http://www.salves.com.br/kunsimbserp.htm

http://www.tantrayoga.pro.br/mitologia.htm

http://www.estadao.com.br/ciencia/noticias/2006/abr/19/132.htm

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